A chamada “caça às bruxas”, que teve origem na Europa do século XV e apogeu na nos séculos XVI e XVII, foi um movimento de fundo e objetivo políticos, com a finalidade de combater seitas pagãs e matriarcais tidas como satânicas. No século XX, a expressão “caça às bruxas” ganhou conotação ampla, referindo-se a qualquer movimento político ou popular de perseguição arbitrária, com o objetivo de imposição de poder.

De tempos em tempos, movimentos autoritários parecem rememorar aqueles tempos sombrios. É isso que se vê, atualmente, na “caça à pejotização” de profissionais liberais, especialmente pessoas jurídicas constituídas por médicos e que prestam serviços a outras pessoas jurídicas, como hospitais, clínicas médicas e mesmo grandes empresas.

Nos últimos anos intensificaram-se fiscalizações por parte da Receita Federal do Brasil, que sustenta a impossibilidade de médicos prestarem serviços por intermédio de pessoas jurídicas, sob a acusação de prática simulada, tendente a dissimular a prestação de serviços que na realidade seriam prestados em caráter personalíssimo pelos próprios médicos pessoas físicas. Contudo, a questão não pode ser lavada a “ferro e fogo”, como tem feito o Fisco federal.

Isso porque, para que se considere simulada a constituição de uma sociedade de profissionais, há que se demonstrar que, por trás da “máscara” da pessoa jurídica prestadora de serviços, há, na realidade, uma relação de emprego entre médico e pessoa jurídica contratante. O ônus da prova, neste caso, é da Receita Federal. No entanto, a tarefa fiscal não é das mais fáceis. As sociedades médicas, na sua imensa maioria, são legalmente constituídas e atuantes de acordo com o ordenamento jurídico, que assegura, inclusive, a terceirização de atividades.

Além disso, para que se caracterize uma relação de emprego, é necessário que se demonstre os requisitos da pessoalidade, subordinação, não eventualidade, onerosidade e alteridade. Por isso, em respeito à boa-fé objetiva, a existência de relação de emprego somente pode ser aferida caso a caso, quando analisadas as provas de cada uma das contratações previamente estabelecidas. O dever de provar o vínculo, como dito, é da administração tributária.

O ordenamento jurídico brasileiro consagra a autonomia da vontade e o princípio da livre iniciativa, razão pela qual não se pode invalidar contratos livremente pactuados entre partes capazes, com objeto lícito e forma não vedada em lei. Quanto à forma, diga-se, a constituição de pessoas jurídicas para prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, não só é lícita como também estimulada, haja vista o disposto no artigo 129 da Lei 11.196/2005.

A legislação civil e empresarial assegura, inclusive, a constituição de pessoas jurídicas unipessoais, como é caso das Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada (Eireli), cuja utilização por médicos é assegurada pela própria Receita Federal, em suas orientações.

Por isso, argumentos que vêm sendo comumente utilizados pela Receita Federal para invalidar pessoas jurídicas prestadoras de serviços médicos (p. ex. ausência de estrutura física ou empresarial de atendimento, inexistência de ativos permanentes e inobservância de regras societárias entre os sócios) não podem, por si só, invalidar as legalmente constituídas. Muito menos pode fazê-lo o Fisco mediante a alegação de ausência de “propósito negocial” (motivação não tributária), figura sequer presente no ordenamento jurídico brasileiro.

O Estado não pode repreender contribuintes que se valem de formas menos onerosas e permitidas por lei, mesmo que a finalidade principal seja a de economizar tributos. Não há dever de buscar a forma tributariamente mais onerosa e, muito menos crime por pretender economizar tributos. Pensar de modo distinto implica desconsiderar todo um sistema de liberdades assegurado pela Constituição.

Por isso, há que se combater essa nova “caça às bruxas”, com claras feições arrecadatórias, sob o risco de o agir arbitrário do Fisco conduzir ao aumento dos custos dos serviços de saúde, o que penalizaria toda a população.

Fonte: diariodocomercio.com.br

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