Neste artigo abordaremos o mito de se utilizar empresas offshore em jurisdições com baixa ou nula tributação (paraísos fiscais). Esse mito reside no medo de se incorrer em ilícitos tributário, regulatório e penal. Todavia, como demonstraremos, o mero uso de entidades (personificadas ou não) que desenvolvem suas atividades offshore (i.e., fora de seu território de constituição) e que sejam sediadas em países com regime de tributação favorecida (tributem a renda a menos de 17%) não constitui qualquer tipo de ilícito, desde que certas obrigações sejam cumpridas.
Para melhor entender o tema, faz-se necessário responder as seguintes perguntas:
1) O que é uma “empresa offshore“?
Uma “empresa”, conforme definição do artigo 966 do Código Civil brasileiro, é uma atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Coloquialmente, contudo, o termo “empresa” é utilizado como sinônimo de “sociedade” ou “pessoa jurídica”, referindo-se à entidade e não à atividade por ela exercida. Assim, “empresa offshore“, no contexto das estruturações internacionais realizadas pelas pessoas físicas e jurídicas, quer dizer, na maior parte das vezes, um “veículo” ou “entidade” offshore. Esse veículo pode ser uma sociedade (como, por exemplo, uma Limited Liability Company (LLC) similar a uma sociedade de responsabilidade limitada no Brasil) ou um ente não-personificado (como, por exemplo, uma Limited Liability Partnership [LLP] ou um trust).
Assim, a “empresa” offshore é um veículo (com ou sem personalidade jurídica, mas com patrimônio e responsabilidade segregados de seus sócios, no caso de uma LLC; ou de seus instituidores, no caso de LLP e Trust) que irá receber valores (normalmente em dinheiro, mas também em bens e direitos, como por exemplo, recebíveis, marcas, patentes, stock options, opções futuras etc.) para investir no exterior, regra geral.
Já o significado do termo “offshore” quer dizer “fora ou longe do território”, ou seja, que não seja no território daquela jurisdição. “Shore” em inglês é “costa”, ou seja, a parte que divide o território de areia/terra do mar/oceano. Portanto, “offshore” é longe da costa, fora do território físico (“land”) de determinado país. Assim, operações “offshore” significam aquelas realizadas fora do local de constituição da pessoa jurídica que, por sinal, costuma ser também fora do local de residência dos sócios (pessoa física ou jurídica).
Por conseguinte, “empresa offshore” advém do fato de a sociedade realizar suas atividades empresariais fora do país em que foi constituída. Não é, portanto, um tipo societário específico, mas sim uma entidade que pode adotar diversos tipos societários (Limitada, Sociedade Anônima, Simples, por Comandita, etc.), inclusive não-personificada (LLP, trust, foundation etc.). Por exemplo, uma entidade constituída nos EUA que opera exclusivamente no Brasil torna-se, por definição, um veículo offshore.
Normalmente as entidades offshore possuem a maior ou toda a parte de seus sócios ou instituidores pessoas físicas ou jurídicas não-residentes no país de constituição da sociedade. Ou seja, uma empresa offshore constituída nos EUA, por exemplo no Estado de Delaware, normalmente é detida por sócios que não residem no país. Isso, contudo, não é um requisito ou condição de constituição ou manutenção da entidade offshore, mas se relaciona com a questão tributária e cambial mais do que propriamente de requisitos mandatórios de lei societária ou civil daquele país de constituição.
2) O que são “paraísos fiscais”?
No que se refere ao termo “paraíso fiscal”, gera-se, ainda, muita confusão para o público em geral. Em inglês, o termo é “tax haven” (refúgio; lugar seguro) e não “tax heaven” (céu; paraíso), e significa uma jurisdição (país ou dependência) com baixa ou nenhuma tributação sobre a renda, sobretudo para operações offshore, isto é, aquelas realizadas fora dos limites territoriais da referida jurisdição (os rendimentos chamados “extraterritoriais”).
Daí porque os sócios ou instituidores das entidades offshore são, quase sempre, investidores estrangeiros — que não residem naquela jurisdição de constituição do veículo offshore: se o sócio/instituidor de uma LLP nos Estados Unidos for residente nos EUA, os rendimentos por ele recebidos seriam tributados no território norte-americano, em razão da residência das pessoas físicas. É interessante, portanto, para a eficiência tributária da estrutura offshore que 1) os rendimentos da LLC não sejam gerados dentro do território norte-americano (renda advinda de cliente localizado ou atividade desenvolvida fora dos EUA); ou 2) os sócios/instituidores da entidade offshore não residam naquela jurisdição (devem ter residência fora dos EUA).
Entre os principais centros offshore do mundo, encontram-se as famosas ilhas caribenhas, como 1) Ilhas Cayman; 2) Ilhas Virgens Britânicas — “BVI”; e 3) Bahamas; bem como jurisdições na Europa (Mônaco; Liechtenstein; Chipre, Gibraltar) e na América Central, principalmente o Panamá.
Aliás, o Panamá foi o vetor do escândalo conhecido como “Panama Papers”, que expôs as estruturas offshore constituídas na referida jurisdição detidas por diversos chefes políticos e empresas multinacionais e que levaram a investigações criminais, sobretudo de corrupção, suborno, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, sonegação fiscal, etc. O caso ainda deu origem ao filme de 2019, A Lavanderia (em inglês, The Laundromat).
Fato é que a definição do que se chama “paraíso fiscal” (termo coloquial que não encontra menção em lei), no Direito brasileiro, advém da Lei 9.430/96, que em seu artigo 24 traz o termo “país ou dependência com tributação favorecida”, assim entendido o país que 1) não tribute a renda ou que a tribute a alíquota máxima inferior a 20% (que, conforme Portaria MF 488/2014 reduziu para 17% o referido percentual); e 2) cuja legislação não permita o acesso a informações relativas à composição societária de pessoas jurídicas, à sua titularidade ou à identificação do beneficiário efetivo de rendimentos atribuídos a não residentes.
A regulamentação das jurisdições entendidas como “tributação favorecida” (i.e., “paraísos fiscais”) atualmente é feita pela Instrução Normativa RFB 1.037/2010, que lista (na chamada “blacklist” ou “lista negra”) em seu artigo 1º todos os países ou dependências assim consideradas nos incisos I a LXVIII (a numeração engana, pois dos 68 incisos há sete revogações ainda numeradas, totalizando 61 jurisdições efetivas).
3) É ilegal ou ilícito constituir “empresas offshore” em “paraísos fiscais”? Quais as consequências?
Ora, se o Poder Legislativo define em lei o que se chama informalmente de “paraíso fiscal” e o Poder Executivo enumera tais jurisdições por meio de instrução normativa, resta indagar quais são as consequências de se estruturar veículos offshore em “países com tributação favorecida” e, sobretudo, se isso seria ilícito, seja pela ótica fiscal ou criminal.
Não há ilicitude em se transacionar com “paraísos fiscais”. Existem apenas consequências jurídicas, que devem ser observadas. Neste ponto, as consequências tributárias para qualquer operação realizada com “países com tributação favorecida” são as seguintes:
Em primeiro lugar, a pessoa física que constituir uma pessoa jurídica no exterior, i.e., criar uma empresa offshore — seja em jurisdição considerada “paraíso fiscal” ou não — está obrigada a declarar essa participação societária em sua Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física (DIRPF) na ficha “bens e direitos” no exato montante em reais que foi utilizado como aporte de capital social no ano de constituição (para participação societária com valor superior a R$ 1.000). A partir do segundo ano, deverá manter declarada na DIRPF a participação (enquanto a detiver) a valor de custo (valor histórico) sem ter que atualizar pela variação cambial entre reais e moeda estrangeira (euro ou dólar), tampouco fazendo valuation (laudo de avaliação) da entidade no exterior ou método de equivalência patrimonial para refletir os lucros gerados ou valorização de ativos no exterior. Para entidades não personificadas como os trusts, a complexidade na declaração é maior e dependerá de uma análise mais detalhada sobre a discricionariedade, irrevogabilidade, jurisdição do beneficiário e do settlor (quem institui o trust), entre outras importantes variáveis.
Desde que sejam declarados os investimentos em sociedade offshore em suas DIRPFs, refletindo a participação em sociedade sediada em paraísos fiscais, como por exemplo, nas Ilhas Virgens Britânicas e no Panamá, não haverá qualquer ilícito tributário ou crime. Isto porque, a Lei nº 4.502/64, em seu artigo 71, define “Sonegação” como:
“Toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária 1) da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, sua natureza ou circunstâncias; ou 2) das condições pessoais de contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário correspondente.”
Se há a declaração do ativo na DIRPF, não se pode alegar falta de conhecimento da autoridade fazendária e, por óbvio, não se materializa a sonegação. E como os rendimentos no exterior são da empresa offshore, também não há omissão de rendimentos por parte da pessoa física residente no Brasil. Por fim, se a origem dos recursos aportados nas empresas offshore é lícita e as remessas ao exterior foram feitas com o fechamento de contratos de câmbio, não há qualquer ocorrência de ilícito criminal (tal como evasão de divisas, por exemplo).
Em segundo lugar, a existência de empresa offshore em paraíso fiscal significa que será aplicada uma alíquota majorada de Imposto de Renda Retido na Fonte (“IRRF”) — de 15% (regra geral) para 25% — sobre os pagamentos e remessas aos “paraísos fiscais”. Assim, contribuintes brasileiros deverão reter e recolher esses 25% caso efetuem pagamentos aos paraísos fiscais a título de juros, juros sobre o capital próprio, importação de serviços, preço decorrente de ganho de capital do não-residente, royalties e direitos de autor.
Por fim, existem outras implicações mais onerosas fiscalmente para transações internacionais com países ou dependências com tributação favorecida, mas a maior parte delas relacionada — sob o ponto de vista prático — a pessoas jurídicas (e não físicas) residentes no Brasil, quais sejam:
1) Aplicação das regras de preço de transferência independentemente de as partes não serem relacionadas (i.e., ainda que não sejam “pessoas vinculadas” para fins do artigo 23 da Lei 9.430/96);
2) Limitação de dedutibilidade de juros em caso de endividamento superior a 30% do valor do patrimônio líquido da pessoa jurídica residente no Brasil;
3) Requisitos adicionais para dedutibilidade de despesas referentes a pagamentos para tais jurisdições (identificação do “efetivo beneficiário”, comprovação de capacidade operacional do não-residente; comprovação documental da efetiva ocorrência da despesa);
4) Impossibilidade de pessoa jurídica brasileira consolidar seus resultados de suas coligadas e controladas no exterior, sujeição ao regime de competência ainda que o vínculo seja de coligação (e não controle) e impossibilidade de parcelamento em oito vezes do IRPJ e CSLL sobre os resultados de controladas e de coligadas equiparadas a controladas; e
5) Impossibilidade de tratamento tributário incentivado (isenção de ganho de capital) para investimentos de não-residentes em bolsa de valores e assemelhados (regime 4.373).
Conclusão: O que é preciso saber
Sob a ótica regulatória, existe a obrigação de reporte dos bens e direitos, a valor de mercado, perante o Bacen, que é realizado atualmente por meio da Declaração de Capitais e Bens detidos no Exterior (“DCBE”), obrigatória para pessoas físicas ou jurídicas residentes ou no Brasil que detenham, no exterior, ativos que totalizem US$ 1 milhão ou mais em 31 de dezembro de cada ano-base. A DCBE é feita eletronicamente e as multas em caso de não declaração ou omissões variam de R$ 2,5 mil a R$ 250 mil, podendo ser aumentada em 50% em alguns casos previstos na legislação.
O mesmo raciocínio da DIRPF vale para a DCBE: se houve declaração correta dos bens e direitos detidos no exterior pela pessoa física, não há que se falar em ilicitude, violação de lei ou omissão de informações patrimoniais, também para fins regulatórios.
Daí conclui-se: havendo transparência da pessoa física em declarar, para fins da Receita Federal e do Bacen, seu patrimônio (bens e direitos) de origem lícita no exterior, da forma correta, não há que se temer constituir ou deter “empresas offshore em paraísos fiscais” — ou, de forma mais correta, “veículos ou entidades offshore em jurisdições com tributação favorecida”. Não havendo conduta para impedir ou retardar o conhecimento das autoridades sobre a existência de veículos offshore, não há o que ilícito incorrido.
Fonte: ConJur